segunda-feira, dezembro 8

Minority Report


A cada eleição, registra-se o dia mais tranqüilo nos plantões de atendimento em emergências hospitalares. A calmaria é obviamente relacionada à chamada lei seca, que proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas no dia do pleito. Os índices de criminalidade, nesta data, também são reduzidos drasticamente em função do controle do grau etílico da população.


Desta forma, nada mais óbvio do que reduzir o horário de funcionamento dos bares da cidade para coibir a violência, atentados contra a vida, assassinatos produzidos por armas brancas, revólveres, pauladas e pedradas. Fruto dessa visão, surge na Câmara Municipal projeto de lei dispondo que a comercialização de álcool para consumo humano só pode acontecer até, no máximo, meia noite de sexta a domingo e 23 horas, nos demais dias da semana.

Como no filme Minority Report , os crimes serão antecipados por mentes iluminadas e todos vão ser privados de sua liberdade. Quase que um toque de recolher em toda cidade, já que não há nada o que se fazer em nenhum lugar. A embriaguez, deduzo eu, fica reservada aos abastados que possuem amplos locais privados que possam reunir amigos a dezenas, assegurando a alegria de todos. Nesses espaços, a lei não terá nenhum alcance, pois legisla apenas sobre comercialização, e não sobre o consumo.

Em nossas terras, parece que é sempre assim. Mata-se o gado para se livrar do carrapato. Condena-se toda uma cidade ao mais violento tédio porque alguns celerados, a cada final de semana, frustram as possibilidades de convivência civilizada produzindo um código penal de crimes. Como o Estado (poderes legislativo, executivo e judiciário) é incapaz de manter a ordem por sua ineficiência, lança o seu poderoso braço e tenta criar uma lei que na prática se transformará em um toque de recolher branco, empurrando a golpes de tédio toda uma população ao recesso de seus lares.

Não sei se leis desta natureza são criadas por questões meramente demagógicas ou por se por ingenuidade de seus autores. Há um código penal que coíbe toda forma de perturbação da ordem pública. Lei do silêncio, criminalização do porte de arma, sanções as mais diversas para agressores, assassinos e outros transgressores da paz social. O aparelho estatal simplesmente faz de conta que o problema não é com ele e dá as costas a esta realidade jurídica. Ninguém é preso, não existem investigações, os julgamentos são viciados, e de cada dez assassinatos acontecidos em Fortaleza só um assassino é indiciado e de cada dez indiciados, só um é condenado e cumpre pena de fato. 99% de tudo de ruim que acontece fica na mais completa impunidade. E é claro que se é tão fácil assim ficar impune, por que cumprir a lei? E se o transgressor possui cifrões em quantidade, basta tão somente contratar um bom advogado esquematizado com poder judiciário.


Prazos de um processo jurídico podem ser prorrogados a exaustão, fazendo os crimes prescreverem. Então, proibamos os bares de vender bebidas e está decretado o fim da violência.
Será isso ingenuidade? Será que nunca ouviram falar na lei seca instituída nos Estados Unidos, quando o consumo de bebida alcoólica foi banido? Para os que nunca ouviram falar disso ou estão esquecidos, quero lembrar que foi um dos períodos mais violentos da história daquele país. Quem nunca ouviu falar a formação de gangues de tráfico de bebida do Canadá, como mostra o filme “Os Intocáveis”? Isso não é ficção, realmente aconteceu.

Outro dado que vale ser salientado é que uma coisa é se passar um domingo, a cada dois anos, sem poder beber em bares. Outra, bem diferente, e nunca mais haver um final de semana onde se possa se estender o lazer regado a algum fermentado ou destilado, além do horário estabelecido em lei. Será que essa nossa gente, tão avesso a respeitar legislações por conta da falta de fiscalização vai se curvar como cordeirinho a essa nova realidade sem reagir? Será que vai mesmo haver um controle efetivo da comercialização de bebidas, ou os amigos do rei vão poder aferir lucros ainda maiores com esse mercado na clandestinidade?

Sinceramente, a julgar pela nossa tradição, que passa décadas assistindo uma contravenção como o jogo do bicho, que convive com cassinos disfarçados de bingos funcionando às custas de liminares judiciais, não creio que o jeitinho brasileiro irá desaparecer de uma hora para outra. Essa nova versão da lei seca, na minha modesta avaliação, irá tão somente propiciar o surgimento de novas modalidade criminosas. Melhor seria se fazer cumprir todas as legislações que regulamentam o convívio social, punindo exemplarmente todos os transgressores, como acontece normalmente, sem nenhuma estapafúrdia, nos países civilizados. Que todos os criminosos cumpram suas penas sem que tenhamos casos como do jornalista Pimenta ou de Daniel Dantas, que certamente não verão nunca o sol nascer quadrado pela condição econômica que desfrutam.

Fortaleza, mundialmente conhecida como a noite mais animada do mundo por sua vasta programação de lazer noturno que pulula o calendário, de segunda a segunda de cada semana, pode, em breve, se transformar em um cemitério após a 12ª badalada notúrnica. Seria, o que não realmente não creio, exterminado uma de nossos raros atrativos e certamente o tão desejado fluxo turístico irá minguar.

E que todos saibam que sou abstêmio há muitos anos, mas que conheci em bares nas madrugadas personalidades como Rogaciano Filho, Márcio Catunda, Sérginho Redes, Katia Freitas, Rosemberg Cariri, Mário Memede, Mona Gadelha, Joe Pimentel, Moura, Nilton Fiore, Silvio Gadelha, e tantas outras pessoas que são caras a nossa gente. Deixar de beber é uma questão de consciência e nunca uma questão de Estado.

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