domingo, maio 8

Não estou só


Há alguns dias postei aqui uma impressões sobre a tentativa de se legislar contra o uso de palavras advindas de outros idiomas. E hoje me deparei com um artigo do meu mestre linguista Sírio Possenti, sobre o mesmo assunto. Como reproduzo aqui abaixo, não estou só. Amém.

Quinta, 5 de maio de 2011, 08h00

É mais uma lei

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Mais uma lei contra estrangeirismo foi votada no Brasil (no RS). Na verdade, como fez questão de dizer seu autor, não se trata exatamente de proibição. Permite que se empreguem palavras estrangeiras, desde que sejam traduzidas. Talvez venhamos a ver "coffee-break (intervalo para o café)", "netbanking (serviços bancários pela internet)", "drinks (bebidas)". Quero ver nos edifícios chamados TOWER acrescentarem TORRE ao lado ou embaixo... E as traduções propostas serão aceitas por todos? Talvez isso gere outro problema. Ou uma profissão - sejamos otimistas... Deixemos esse tema para outra ocasião. Não se exigirá uniformidade, espero. Mas corre-se o risco de uma lei da tradução, ou de um dicionário de autoria do legislativo.

O argumento é que os cidadãos têm direito à informação. E o que fazer com as bulas de remédio, os contratos de aluguel e os votos no Supremo? O deputado Carrion foi um pouco primário em sua entrevista, além do mais. Ele acha, pelo que se leu no Terra, que "blecaute" pode, o problema é "blackout" ("Muitas vezes, a língua absorveu aquela palavra, ela está dicionarizada, mas com uma determinada grafia, como em blecaute. Para que vai usar blackout?"). Assim, parece que tudo é uma questão de tempo. Se é, por que uma lei? E quem sabe o que é blecaute?

Vou repetir observações breves sobre o tema, as mesmas que apresentei por ocasião do projeto do deputado Aldo Rebelo:

(a) por que uma lei para proibir estrangeirismos e não outras tantas para proibir produtos estrangeiros? Afinal, as palavras seguem "as coisas" - os produtos, a cultura. Por que podemos usar jeans, ouvir rock, ver Hollywood, comer McDonals e não podemos dizer "delivery"? O contato cultural sempre produz alguma invasão. Cultural e lingüística. Quanto maior a assimetria econômica e cultural, maior a "invasão".

Não pense o distraído leitor que estou defendendo tais leis. O objetivo é argumentar que não há razão para leis que controlem as palavras.

(b) As pessoas que usam palavras estrangeiras são ridículas? Pode ser. Mas a humanidade é ridícula - o deputado incluído. E eu não me excluo do time. Quem madrugou para ver o casamento de William e Kate é ridículo, quem está usando imitação do anel da Kate é ridículo, quem vota para escolher vencedores e vencidos no Big Brother é ridículo, quem segue Lady Gaga é ridículo, quem vê TV Xuxa é ridículo etc. Vamos mudar isso com leis? Ora!

(c) O estrangeirismo mostra que "nossa" língua é forte: todas as palavras estrangeiras são adaptadas à fonologia e à morfologia da língua receptora. Exemplo: todos os verbos vindos do inglês são da primeira conjugação e são regulares. E como você acha que pronunciamos "marketing", "download" e "e-mail"? Mais ou menos como pronunciamos "beque" (de "back")... Pode haver um problema político em jogo, mais um entre tantos outros. Mas, do ponto de vista da língua, só há ganhos: ela se enriquece, cresce, incorpora novos termos (não fica com todos, pois descarta muitos), define melhor certos sentidos. Ou você acha que "entrega" é a mesma coisa que "delivery", que "salvar" é igual a "gravar". Quem "salva" corações flechados em cascas de árvore durante os piqueniques (olha uma delas aí!)?

(d) Eu me pergunto se as outras leis (de caráter econômico, ambiental, criminal etc.) também são elaboradas pelos legisladores com base em conhecimentos tão toscos. Torço para que eles só errem quando se trata de língua. Afinal, é um tema que todo mundo acha que conhece - e que, parece que pega mal estudar...

Acrescento: se é para manter a língua "pura", em qual estágio diríamos que não estava contaminada? Antes ou depois do domínio dos árabes na península ibérica? Antes ou depois da incorporação de palavras indígenas ou africanas?

O que faremos com o sutiã, o abajur, o futebol e o basquete?

Um comentário:

fatima disse...

Como faz falta um bom mergulho para largar a superficie tão saturada.... Gostei demais desse artigo. Um abraço.