quinta-feira, agosto 10

A vida líquida e o absurdo do suicídio de Hannah Baker

“Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.”

Assim pensa e expõe Albert Camus, na abertura do Mito de Sísifo. As primeiras linhas do primeiro capítulo “O absurdo do suicídio”.  O filósofo existencialista tratou dessa questão que hoje se atualiza com extrema velocidade e profusão. Há uma baleia azul na Europa Oriental, que convida os desavisados a realizar 50 tarefas, encerrando com a tirada da vida do participante. Há uma série Netflix, 13 reasons why, que trata do suicídio de Hannah Baker como uma questão social, envolvendo vários atores (não no sentido cenográfico, mas de participantes da ação). Na produção, ao longo de 13 capítulos, que correspondem a 13 lados de fitas cassetes gravadas, com explicações da sua tomada de decisão, ela procura apontar razões exteriores que a encaminharam para a morte. 

“Há muitas causas para o suicídio, e nem sempre as causas mais aparentes foram as mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão. O que desencadeia a crise é quase incontrolável”.  Aponta Camus. O personagem Hannah, no entanto, parece desafiar a assertiva do argelino.  Ela é muito metódica em apontar cada momento que, ao longo da sua breve existência (se mata aos 16), a levou ao desenlace fatal. A morte é a saída para o peso da vida que nem todo mundo é capaz de suportar sobre os ombros.  O tema é geralmente evitado pelos veículos de comunicação para impedir a propagação da ideia. Raramente, algum noticiário se refere a suicídio, salvo se a vítima tiver uma relevância exponencial na sociedade. O suicida é tratado, não raras vezes, como fruto de um distúrbio mental, uma depressão, ou alguma demência para além do controle da própria vida.  “Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos”. (Camus).

O Mito de Sísifo escrito em 1942, durante o período da guerra, quando a França estava invadida pelas forças nazistas. Com certeza, aquele não foi um período fácil para a população francesa, notadamente os mais jovens. Mas se hoje, não há guerras no mundo ocidental, não no sentido convencionalmente declarada, parece sobrar motivos para a angústia, o desespero, a frustração e tragédias. A vida social é ambiente hostil, quer seja na escola, no trabalho, na família, na igreja, no estádio de futebol ou no clube. O capitalismo dividindo as nações entre winners e losers (ganhadores e perdedores).  Até mesmo as religiões, que em passado próximo já serviu de abrigo para os desvalidos, hoje aponta a falta de fé como o único fator do fracasso. A teologia da prosperidade, caminho fácil para líderes religiosos aferirem lucros e compensações financeiras, diz claramente que apenas os que crêem vão ter a oportunidade de sair do poço sem fundo onde enfiaram as suas próprias existências.  Se está desempregado, se está enfermo, meteu-se com drogas, não se aflija. Entregue o seu coração a Jesus e todos os seus caminhos se abrirão, amém. Se nada melhorar para você, é porque você está em mãos malignas. Pague alguma pequena fortuna para ter direito a uma sessão de exorcismo particular. Não conseguir a tão sonhada redenção não é culpa de mais ninguém a não ser sua mesmo.  Nada tem a ver com a crise capitalista instalada no país, com a retirada de direitos sociais históricos, ou com a ganância dos exploradores rentistas. Assuma a sua culpa pessoal, por mais desesperador que isso possa ser. E se por algum motivo, a dor for demasiada, e se matar, saiba que as profundezas do inferno lhe espera.

“As acusações lançadas sobre a vítima não se tornam mais verdadeiras por serem proferidas em coro. A verdade estava e permanece do lado da vítima”, cita Zigmunt Bauman, em Vida líquida (2005). A julgar pelas fortes indicações, a causa primeva do suicídio não é um impulso interior. Não se trata de um distúrbio mental. Deve haver dispositivos que antes de se instalar o desejo à morte, foram as condições de possibilidade do florescimento da vontade de autodestruição, que surjam por questões externas. “Para validar a perda da vida, o propósito deve oferecer ao herói um valor maior que todas as alegrias de continuar vivendo sobre a terra”.  (idem,idem).

Em 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander, da Universidade de Simon Fraser (Columbia Britânica), já havia identificado, através de estudos com ratos, a origem dos distúrbios mentais que levam ao consumo de drogas, que em muitos casos chegam a ser um problema fatal. Conta a lenda que, antes do experimento, ele já tinha observado que soldados americanos que haviam se viciado em heroína nos campos de batalha no Vietnam, e ao retornarem ao convívio familiar e social, rapidamente deixavam o vício sem nenhuma terapia. Os ratinhos de laboratório foram induzidos a consumir heroína através da ração de água, e logo em seguida foi dada aos bichinhos viciados, postos em confinamento, a opção de beber água pura, em vez da mistura com heroína. Viciados que estavam, praticamente todos preferiam saciar seus desejos com a mistura água/narcótico.
A experiência teve uma virada quando o psicólogo criou um grande parque de diversões, com diversos brinquedos para ratos, colocando todos os “viciados” no mesmo ambiente, devolvendo todos, assim, ao convívio social, mas mantida a opção de escolha entre a água pura e a mistura com heroína. Eles rapidamente abandonaram o “vício” e retornaram à vida saudável. É o ecossistema em que o espécime está inserido a causa primeira do desajuste. O descompasso entre o que seria uma vida feliz e as agruras impostas são os gatilhos que empurram para o precipício do vício, que também se transforma em uma única fonte, mínima que seja, se satisfação e prazer. Sair do ambiente hostil e perigoso e ser envolto em afetividades e prazeres outros funciona bem melhor do que qualquer terapia para a cura dos vícios, ao que indica o estudo do canadense.
Zygmunt Balman, destaca que “os mártires são pessoas que enfrentam desvantagens esmagadoras. Não apenas no sentido de que sua morte é quase certa, mas também que é seu derradeiro sacrifício provavelmente não será valorizado pelos espectadores”. Parece que é esse o caminho que Hannah trilha. Diante de tantas situações extremamente desagradáveis e degradantes que enfrenta, sem nunca conseguir comunicar o seu verdadeiro estado de espírito, ela não consegue encontrar uma saída, ou pelo menos vislumbrar alguma esperança que possa a retomar alguma dignidade para sua própria vida. Perdeu totalmente a falta de comunicação entre o seu verdadeiro eu, que quer ser aceita, e o mundo exterior que só lhe apresenta situações desconfortáveis e extremamente doloridas. A busca da auto imolação é como se fosse o seu último grito de desespero diante de um mundo pesado que a sufoca de maneira insofismável. Nem a busca de um conselheiro escolar, que possa dar uma nova direção e salvá-la do sacrifício a que se impõe, é alentador. Só escuta dele que se ela não tem como desafiar seus agressores, só resta a ela se conformar com o sofrimento e fazer de conta que a sua própria vida não existe, que as agruras são coisas do passado e não constitutivas do seu próprio eu. Mas como dizer para si mesmo que  a sua vida absurda não é real?
            “Ser um indivíduo é ser igual a todos do grupo”, assinala Balman. Mas Hannah, por mais que tente, não chega a esse estágio. Em sua escola, os mais próximos são os primeiros a fazer pouco caso dela. Seu “crush” que conseguiu fotografá-la em um momento íntimo, exibe o troféu aos colegas e logo a imagem é distribuída pelas redes sociais. O ultraje é o mais amplo possível, com piadinhas ditas em corredores. Olhares furtivos e cochichos entre os pares têm efeitos devastadores. De desconhecida da turma, já que havia se transferido recentemente para a escola, passa a ser a “menina fácil”, que dá “mole” para qualquer um. Ela não se sente assim, mas a sucessão de eventos que se seguem não a deixa fugir dessa aura de preconceitos, maledicências e boullyings abertos e declarados. Outros meninos se aproximam apenas para obter facilidades sexuais. Ela não é mais uma igual. “Ser indivíduo significa ser igual a todos do grupo” (Balman, idem) . É a estranha,  e a única possibilidade é se isolar, quando possível, ou quando não, devido às atividades escolares, se escudar em uma couraça de indiferença a tudo que a cerca. Mas isso está longe de ser uma tarefa fácil quando se tem 16 anos, quando os mais próximos arrumam motivos para desdenhar dela. Não é mais possível a ser indivíduo igual a todos do grupo.

O temor que mais momentos indesejáveis repitam na sua vida amplia ao máximo a sua sensibilidade negativa a quem quer que se aproxime. Tanto é assim que Clay, uma das raras pessoas em toda série que realmente nutre por ela bons sentimentos, ou pelo menos aparenta nutrir, é repelido veementente ao buscar uma maior intimidade, mesmo que honesto em seus propósitos. Hannah já não vê mais como baixar a guarda, diante de tantos infortúnios sofridos nas mãos de adolescentes masculinos e femininos. “A individualidade...precisa da sociedade simultaneamente como berço e como destino..”(Balman, idem). O machismo expresso na série, nega a sociabilidade com a jovem.  Ao contrário, mostra, enfaticamente, que mulheres são seres de segunda classe que devem girar em torno dos desejos e atividades masculinos. Afinal de contas, elas não passam em “cheerleaders”, enquanto eles são os astros dos times da escolas, os merecedores de todos os incensos e festejos. Transar com o ídolo do basquete ou dobasebol é o máximo que as meninas podem almejar. Não há lugares de liderança ou de honra para o sexo feminino no meio escolar americano.

A tragédia só se aprofunda, sem uma alternativa de fuga. A rota traçada para a morte segue inabalável na vida de Hannah. Depois de ser estuprada pela estrela do time de basquete, a protagonista define o seu fim em uma banheira de sua casa, com os pulsos cortados. Assim como Antígona, que mesmo sabendo que seria condenada a morte por enterrar o seu irmão, A adolescente prefere sair do mundo a continuar carregando todo o peso que sua curta existência resolveu por sobre os seus ombros. “O caminho que leva à identidade é uma batalha em curso e uma luta interminável entre o desejo de liberdade e a necessidade de segurança” (Balman). A batalha é perdida. É tarde, Hannah é morta.

Referências
Vida Líquida. BAUMAN, Zigmunt. 3ª Edição. Rio de Janeiro, Zahar, 2009
O mito de Sísifo. CAMUS, Albert. 2ª Edição. Rio de Janeiro, Record, 2004
Bruce Alexander e o mito do vício. http://www.naopossoevitar.com.br/2009/07/experimentos-em-psicologia-bruce-alexander-e-o-mito-do-vicio.html

terça-feira, agosto 8

Handmaid's Tale e o fundamentalismo religioso no Brasil

A moda agora é assistir séries, fazer maratonas, ficar final de semana totalmente dedicado aos capítulos de uma nova temporada. Apelos e serviços não faltam. Tudo ao alcance de uma assinatura de uma operadora de TV por Internet. Com tanta demanda, a quantidade de bagulhos aumentou exponencialmente, também. Porcarias para todos os gostos, salvo raras exceções.

Handmaid’s tale é uma dessas produções que estão bem acima da média. Pelo menos a primeira temporada que foi disponibilizada apenas através de serviços considerados piratas, no Brasil. Se quiserem descrições sobre o conteúdo, há esse link no Wikipédia. Mas a reflexão mais importante, não é bem esclarecida nos sites que encontrei.

A história trata de uma distopia em um futuro próximo, onde o poder é assumido por fundamentalistas cristãos,  que adotam a bíblia como o código de ética da sociedade. É criada uma sociedade falocentrista, onde as mulheres sequer tem direito a propriedade ou ao trabalho. Como a sociedade está declinando por conta da baixa taxa de natalidade, homens da estrutura do poder, casados com esposas inférteis, são autorizados a estuprar suas aias (mulheres de classes inferiores). O ato recebe o nome de cerimônia, e é assistido pela esposa do casal, que “abençoa” a relação em nome de uma maternidade, que irá assumir, com o sequestro da criança de sua legítima mãe.  

A bíblia é o eixo que ordena a sociedade e seus novos costumes. A relação extraconjugal é justificada através do patriarca Abraão, que também teve relações com a sua escrava. A mulher tem um papel totalmente secundário. Algumas são casadas e administram as suas casas, e as demais são serviçais não remuneradas, com os úteros apropriados pelo Estado, que define como, quando e aonde elas irão copular, com o objetivo de apenas gerar filhos para a sociedade patriarcal.

Para mim, a série, é baseada em um livro premonitório escrito há 32 anos. Na época em que foi escrito,  o Talibã sequer havia chegado ao poder. A instrumentalização das crenças e do mito da existência de um ser supremo, metafísico, onisciente é levada às últimas consequências na obra ficcional, como já acontece em alguns países mulçumanos.   
   
A lei que vale não é exatamente o que está escrito, mas a interpretação que se dá ao texto reconhecido como religioso. Assim, é fácil demonizar o inimigo, e glorificar os seus aliados. A guerra civil nos Estados Unidos, que promove o surgimento da república de Gileade, fundou-se de forma progressiva. Primeiro, as mulheres foram proibidas de ter propriedades e de trabalhar, em seguida, iniciaram-se as perseguições aos dissidentes, assim como ocorreu aos judeus na Alemanha. Em terceiro, com a vitória política e militar, instaura-se uma ditadura religiosa.


Infelizmente, no Brasil, já se pode ver passos sendo dados na direção do fundamentalismo religioso, a quem tem um olhar mais atento. O primeiro passo dado é a criação de novos conceitos que desqualifiquem o inimigo. Como “escola sem partido”, que é a forma de bloquear qualquer possibilidade de informações sobre sistemas políticos de esquerda, e a “ideologia de gênero”, que tenta reduzir a meros comportamentos a diversidade cultural. Claro que todo isso condenando movimentos políticos de esquerda e de emancipações das minorias. Ainda está distante o Brasil se transformar em uma Gileade, mas quando há gente que quer o retorno de uma ditadura militar no Brasil, e um proselitista de torturas pode chegar ao poder, talvez a distância não seja tão grande assim.