“Só
existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida
vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da
filosofia.”
Assim
pensa e expõe Albert Camus, na abertura do Mito de Sísifo. As primeiras linhas
do primeiro capítulo “O absurdo do suicídio”.
O filósofo existencialista tratou dessa questão que hoje se atualiza com
extrema velocidade e profusão. Há uma baleia azul na Europa Oriental, que
convida os desavisados a realizar 50 tarefas, encerrando com a tirada da vida
do participante. Há uma série Netflix, 13 reasons why, que trata do suicídio de
Hannah Baker como uma questão social, envolvendo vários atores (não no sentido
cenográfico, mas de participantes da ação). Na produção, ao longo de 13
capítulos, que correspondem a 13 lados de fitas cassetes gravadas, com
explicações da sua tomada de decisão, ela procura apontar razões exteriores que
a encaminharam para a morte.
“Há
muitas causas para o suicídio, e nem sempre as causas mais aparentes foram as
mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão. O que desencadeia a
crise é quase incontrolável”. Aponta
Camus. O personagem Hannah, no entanto, parece desafiar a assertiva do
argelino. Ela é muito metódica em
apontar cada momento que, ao longo da sua breve existência (se mata aos 16), a
levou ao desenlace fatal. A morte é a saída para o peso da vida que nem todo
mundo é capaz de suportar sobre os ombros.
O tema é geralmente evitado pelos veículos de comunicação para impedir a
propagação da ideia. Raramente, algum noticiário se refere a suicídio, salvo se
a vítima tiver uma relevância exponencial na sociedade. O suicida é tratado,
não raras vezes, como fruto de um distúrbio mental, uma depressão, ou alguma
demência para além do controle da própria vida.
“Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar
que fomos superados pela vida ou que não a entendemos”. (Camus).
O
Mito de Sísifo escrito em 1942, durante o período da guerra, quando a França
estava invadida pelas forças nazistas. Com certeza, aquele não foi um período
fácil para a
população francesa, notadamente os mais jovens. Mas se hoje, não há guerras no
mundo ocidental, não no sentido convencionalmente declarada, parece sobrar
motivos para a angústia, o desespero, a frustração e tragédias. A vida social é
ambiente hostil, quer seja na escola, no trabalho, na família, na igreja, no
estádio de futebol ou no clube. O capitalismo dividindo as nações entre winners
e losers (ganhadores e perdedores). Até
mesmo as religiões, que em passado próximo já serviu de abrigo para os
desvalidos, hoje aponta a falta de fé como o único fator do fracasso. A
teologia da prosperidade, caminho fácil para líderes religiosos aferirem lucros
e compensações financeiras, diz claramente que apenas os que crêem vão ter a
oportunidade de sair do poço sem fundo onde enfiaram as suas próprias
existências. Se está desempregado, se
está enfermo, meteu-se com drogas, não se aflija. Entregue o seu coração a
Jesus e todos os seus caminhos se abrirão, amém. Se nada melhorar para você, é
porque você está em mãos malignas. Pague alguma pequena fortuna para ter
direito a uma sessão de exorcismo particular. Não conseguir a tão sonhada
redenção não é culpa de mais ninguém a não ser sua mesmo. Nada tem a ver com a crise capitalista
instalada no país, com a retirada de direitos sociais históricos, ou com a
ganância dos exploradores rentistas. Assuma a sua culpa pessoal, por mais
desesperador que isso possa ser. E se por algum motivo, a dor for demasiada, e
se matar, saiba que as profundezas do inferno lhe espera.
“As
acusações lançadas sobre a vítima não se tornam mais verdadeiras por serem
proferidas em coro. A verdade estava e permanece do lado da vítima”, cita
Zigmunt Bauman, em Vida líquida (2005).
A julgar pelas fortes indicações, a causa primeva do suicídio não é um impulso
interior. Não se trata de um distúrbio mental. Deve haver dispositivos que
antes de se instalar o desejo à morte, foram as condições de possibilidade do
florescimento da vontade de autodestruição, que surjam por questões externas. “Para
validar a perda da vida, o propósito deve oferecer ao herói um valor maior que
todas as alegrias de continuar vivendo sobre a terra”. (idem,idem).
Em
1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander, da Universidade de Simon Fraser
(Columbia Britânica), já havia identificado, através de estudos com ratos, a
origem dos distúrbios mentais que levam ao consumo de drogas, que em muitos
casos chegam a ser um problema fatal. Conta a lenda que, antes do experimento,
ele já tinha observado que soldados americanos que haviam se viciado em heroína
nos campos de batalha
no Vietnam, e ao retornarem ao convívio familiar e social, rapidamente deixavam
o vício sem nenhuma terapia. Os ratinhos de laboratório foram induzidos a
consumir heroína através da ração de água, e logo em seguida foi dada aos
bichinhos viciados, postos em confinamento, a opção de beber água pura, em vez
da mistura com heroína. Viciados que estavam, praticamente todos preferiam
saciar seus desejos com a mistura água/narcótico.
A
experiência teve uma virada quando o psicólogo criou um grande parque de
diversões, com diversos brinquedos para ratos, colocando todos os “viciados” no
mesmo ambiente, devolvendo todos, assim, ao convívio social, mas mantida a
opção de escolha entre a água pura e a mistura com heroína. Eles rapidamente
abandonaram o “vício” e retornaram à vida saudável. É o ecossistema em que o
espécime está inserido a causa primeira do desajuste. O descompasso entre o que
seria uma vida feliz e as agruras impostas são os gatilhos que empurram para o
precipício do vício, que também se transforma em uma única fonte, mínima que
seja, se satisfação e prazer. Sair do ambiente hostil e perigoso e ser envolto
em afetividades e prazeres outros funciona bem melhor do que qualquer terapia
para a cura dos vícios, ao que indica o estudo do canadense.
Zygmunt
Balman, destaca que “os mártires são pessoas que enfrentam desvantagens
esmagadoras. Não apenas no sentido de que sua morte é quase certa, mas também
que é seu derradeiro sacrifício provavelmente não será valorizado pelos
espectadores”. Parece que é esse o caminho que Hannah trilha. Diante de tantas
situações extremamente desagradáveis e degradantes que enfrenta, sem nunca
conseguir comunicar o seu verdadeiro estado de espírito, ela não consegue
encontrar uma saída, ou pelo menos vislumbrar alguma esperança que possa a
retomar alguma dignidade para sua própria vida. Perdeu totalmente a falta de
comunicação entre o seu verdadeiro eu, que quer ser aceita, e o mundo exterior
que só lhe apresenta situações desconfortáveis e extremamente doloridas. A
busca da auto imolação é como se fosse o seu último grito de desespero diante
de um mundo pesado que a sufoca de maneira insofismável. Nem a busca de um
conselheiro escolar, que possa dar uma nova direção e salvá-la do sacrifício a
que se impõe, é alentador. Só escuta dele que se ela não tem como desafiar seus
agressores, só resta a ela se conformar com o sofrimento e fazer de conta que a
sua própria
vida não existe, que as agruras são coisas do passado e não constitutivas do
seu próprio eu. Mas como dizer para si mesmo que a sua vida absurda não é real?
“Ser
um indivíduo é ser igual a todos do grupo”, assinala Balman. Mas Hannah, por
mais que tente, não chega a esse estágio. Em sua escola, os mais próximos são
os primeiros a fazer pouco caso dela. Seu “crush” que conseguiu fotografá-la em
um momento íntimo, exibe o troféu aos colegas e logo a imagem é distribuída
pelas redes sociais. O ultraje é o mais amplo possível, com piadinhas ditas em
corredores. Olhares furtivos e cochichos entre os pares têm efeitos
devastadores. De desconhecida da turma, já que havia se transferido
recentemente para a escola, passa a ser a “menina fácil”, que dá “mole” para
qualquer um. Ela não se sente assim, mas a sucessão de eventos que se seguem
não a deixa fugir dessa aura de preconceitos, maledicências e boullyings
abertos e declarados. Outros meninos se aproximam apenas para obter facilidades
sexuais. Ela não é mais uma igual. “Ser indivíduo significa ser igual a todos
do grupo” (Balman, idem) . É a estranha, e a única possibilidade é se isolar, quando
possível, ou quando não, devido às atividades escolares, se escudar em uma
couraça de indiferença a tudo que a cerca. Mas isso está longe de ser uma
tarefa fácil quando se tem 16 anos, quando os mais próximos arrumam motivos
para desdenhar dela. Não é mais possível a ser indivíduo igual a todos do
grupo.
O
temor que mais momentos indesejáveis repitam na sua vida amplia ao máximo a sua
sensibilidade negativa a quem quer que se aproxime. Tanto é assim que Clay, uma
das raras pessoas em toda série que realmente nutre por ela bons sentimentos,
ou pelo menos aparenta nutrir, é repelido veementente ao buscar uma maior
intimidade, mesmo que honesto em seus propósitos. Hannah já não vê mais como
baixar a guarda, diante de tantos infortúnios sofridos nas mãos de adolescentes
masculinos e femininos. “A individualidade...precisa da sociedade
simultaneamente como berço e como destino..”(Balman, idem). O machismo expresso
na série, nega a sociabilidade com a jovem. Ao contrário, mostra, enfaticamente, que
mulheres são seres de segunda classe que devem girar em torno dos desejos e
atividades masculinos. Afinal de contas, elas não passam em “cheerleaders”,
enquanto eles são os astros dos times da escolas, os merecedores de todos os
incensos e festejos. Transar com o ídolo do basquete ou dobasebol
é o máximo que as meninas podem almejar. Não há lugares de liderança ou de
honra para o sexo feminino no meio escolar americano.
A
tragédia só se aprofunda, sem uma alternativa de fuga. A rota traçada para a
morte segue inabalável na vida de Hannah. Depois de ser estuprada pela estrela
do time de basquete, a protagonista define o seu fim em uma banheira de sua
casa, com os pulsos cortados. Assim como Antígona, que mesmo sabendo que seria
condenada a morte por enterrar o seu irmão, A adolescente prefere sair do mundo
a continuar carregando todo o peso que sua curta existência resolveu por sobre
os seus ombros. “O caminho que leva à identidade é uma batalha em curso e uma
luta interminável entre o desejo de liberdade e a necessidade de segurança”
(Balman). A batalha é perdida. É tarde, Hannah é morta.
Referências
Vida Líquida. BAUMAN, Zigmunt. 3ª
Edição. Rio de Janeiro, Zahar, 2009
O mito de Sísifo. CAMUS, Albert. 2ª
Edição. Rio de Janeiro, Record, 2004
Bruce Alexander e o mito do
vício. http://www.naopossoevitar.com.br/2009/07/experimentos-em-psicologia-bruce-alexander-e-o-mito-do-vicio.html