Está muito claro,
até para o olhar mais desavisado, que estão se esgrimando no
cenário nacional duas narrativas em meio a esta pandemia. Uma
científica e outra política. A que se respalda na ciência aponta
que é necessário para frear a evolução do surto mundial o
isolamento social. Não que isso possa deter completamente a
disseminação do novo coronavírus, mas cria hiatos temporais, o
chamado achatamento da curva, evitando que os hospitais de
acolhimento aos enfermos fiquem abarrotados, com pacientes morrendo
na fila à espera de um leito. É esse o discurso científico aceito
em quase a totalidade dos 185 países e territórios já atingidos.
O discurso político
adota o viés oposto. A fome que seria provocada pelo desemprego
decorrente da paralisação dos setores produtivos é um mal bem
maior, e, mesmo a custa da morte de alguns, os postos de trabalho
devem ser mantidos na ativa. Isto seria impossível com o isolamento
social. Afastados do convívio apenas as pessoas em situação de
risco, portadores de comorbidades e obesos, deixando os novos e
saudáveis circulando normalmente nas urbes.
É claro que quem
adota essa estratégia já tem o discurso na ponta da língua,
passado o pico da crise. Após a intempérie sanitária, vai
afirmar, diante da impossibilidade de se provar o contrário, que as
mortes mesmo com todo isolamento jamais seriam evitadas. E se a
máquina da economia continuasse funcionando, os estragos seriam
menores, haja vista que os empregos ficariam preservados, negócios
gerariam rendas e o mercado fortalecido diante das oportunidades
geradas pela crise.
O discurso político
antagônico ao científico continua fortalecido, já que ainda não
cessaram manifestações em sua defesa. Vide carreatas no eixo
Rio-SP, ocorridas no último sábado. Resta saber o quão resistente
ele será. Em tempos de terraplanistas, até mesmo desfiles
intermináveis de caixões fúnebres nos cenários urbanos seriam
incapazes de deter essa lógica de terra arrasada? Particulamente,
tenho minhas dúvidas. Ainda mais que possuímos uma gigante
população cristã sob os títeres de pastores, sempre mantendo a
esperança de um acontecimento sobrenatural, capaz de deter qualquer
malefício.
Dentro de mim ainda
há esperança no bom senso, nas possibilidades científicas da cura,
de uma sequela poderosa nesse discurso político que se irmana ao
ódio. No entanto, não passa de esperança já que as vozes mais
sensatas estão sendo sempre obscurecidas pela pouca audiência, e
pelos algozes das boas ideias, que insistem em disseminar fake news
nas redes sociais. Que alguma força superior ilumine os que ainda
insistem em viver as trevas das cavernas, é o que desejo.