quarta-feira, dezembro 9

Uma morte anunciada

Numa madrugada de sábado, Kérsia deixa a vida para entrar para as estatísticas de crimes passionais. Onze tiros de pistola ponto quarenta foram disparados. Sete balas lhe ceifaram o direito de respirar, andar, trabalhar, sonhar e amar. Aos 29 anos, não está mais entre nós. Foi atingida covardemente. Duas vezes nas costas, uma no peito, duas nas pernas, e duas nos braços. Depois da brutalidade, para a qual não há definição conhecida, seu marido suicidou-se. A jura de amor eterno feita há pouco mais de um ano foi mesmo só um protocolo social sem nenhuma representação prática no mundo real.

Pouco eu sabia dela em vida. Colega de trabalho com quem troquei poucas palavras. Depois que se foi algumas coisas me foram ditas por amigos que lhe eram mais próximos. Tudo o que ouvi me pareceu uma crônica de uma morte anunciada. Se tudo que todos sabiam sobre ela e seu marido fosse de conhecimento público, certamente o seu largo sorriso ainda estaria sendo aberto por aí, para encantar tantos quantos lhe rodeassem.

Animada, era presença certa na noite de Fortaleza. Isso antes do casamento. Amigas contam o quanto era animada e divertida. Até que conheceu o seu algoz travestido de marido. No começo, o sargento da polícia fez todas as cortes. Envolveu-a estrategicamente até levá-la ao altar. Antes disso, fez afastar-se das amigas solteiras, que na sua lógica machista eram todas umas perdidas, portanto más influências. Ao mesmo tempo, conduziu-a para uma igreja protestante, dessas que têm em todas esquinas, onde o pastor esbraveja contra as tentações da carne e impõe às mulheres um papel de abnegada submissão.

Menina inteligente, com futuro promissor à frente, planos de mestrados e viagens ao exterior para se aperfeiçoar humana e profissionalmente. Mas rendeu-se aos apelos sociais que impõem às mulheres a realização do compromisso social e moral do casamento. Fantasma do caritó assusta. Quando as amigas em sua volta vão contraindo núpcias, a solução é se engraçar com quem estiver por perto disposto também a dividir sua vida.

Mas o plano A, onde o plano B não é alternativa, pode assumir um desenho dantesco. Para profunda infelicidade de Kérsia, os antecedentes do marido não foram levados em consideração. O sargento da Polícia já tinha passado de violência. A lei Maria da Penha estava espetada em suas costas por sua ex-mulher. Ela sabia disso. A família dela sabia disso. Amigos e amigas sabiam disso. Mesmo assim, o barco foi tocado em frente, rumo à tempestade que viria. Todos têm medo de se meter em uma história dessas. Um alerta em uma situação semelhante muitas vezes se volta a quem fez, e se ganha, muitas vezes a troco de nada, a inimizade do casal. Pai e mãe querer impedir um relacionamento com ares de desastroso não raras vezes é interpretado como uma interferência sobradamente indevida. Afinal, nenhum homem ou mulher é suficientemente bom para os meus filhos.

E a receita da tragédia vai no piloto automático. Ceninhas de ciúme vão se repetindo ao longo da história sem que ninguém interfira. A menina não pode mais olhar para os lados. Para algum homem, nem pensar. O vestuário criteriosamente controlado, porque afinal de contas uma mulher de bem não se veste como qualquer uma. Horários são vigiados. Qualquer sinal de fuga do padrão, da rotina diária é motivo para rusgas sem fim, desgastantes agressões pessoais, coisas do gênero. Homem não casa, toma posse. A propriedade não tem mais vontade senão servir para eterna satisfação do seu cônjuge. Não há mais prazer em ter a sua companhia. Só estresse e satisfação de instintos.

É nesse cenário terrível que as catástrofes se precipitam. Todos em volta sabem de alguma parte dessa história. Mas da missa não se sabe um terço. Todos têm alguma responsabilidade. Não adianta só ficar jogando a responsabilidade para uma cultura machista herdada de nossos primórdios colonizadores. Nem na condição econômica de agressor e agredida. Na Suécia, 46% das mulheres sofreram violência de homem. Ou ainda vão sofrer.

Ao que me parece, enquanto as mulheres são educadas para serem felizes no casamento, cuidando de casa, filhos e marido, os homens, não. Recebem outro tipo de educação que os empurram para a formação profissional, trabalho, competição e defesa dos seus interesses individuais. Casar-se para os homens, é dito em rodas masculinas, mais se aproxima da escravidão, a redução dos prazeres e das diversões. É uma cangalha que lhes põem nas costas e lhes cobram mil compromissos, votos de fidelidade, entre outras coisas. Ou será que estou muito fora da realidade?

Pois é. Kérsia encontrou com um destino que ninguém espera. Nem para si, nem para os outros. Que dor deve ter sentido ao ver, em seus últimos instantes, que aquele quem ela mais amou, entre todos os homens, foi o que mais lhe fez mal. A lacuna que deixa entre amigos, familiares e colegas não será preenchida. Não será a última. Muitas ainda vão tombar antes de os homens se transformarem. Não há nada que ninguém possa fazer para impedir isso. Como dói.

Para quem quer relembrar ou saber como era ela o link do seu blog http://kersiaporto.zip.net/

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